Excelente Artigo de autoria do Professor Luiz Flávio Gomes.
LUIZ FLÁVIO GOMES
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br - Pesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante.
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Crimes previdenciários e princípio da insignificância. Disponível em http://www.lfg.com.br - 08 de setembro de 2010.
Em 22 de junho de 2010 a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu habeas corpus em que condenado pelo delito de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) pleiteava a aplicação do princípio da insignificância (STF, HC 98021/SC, Primeira Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22.06.2010, DJe-149, 13.08.2010).
O impetrante sustentou a atipicidade da conduta praticada pela aplicação do princípio da insignificância, pois seria de pequeno valor a contribuição previdenciária descontada e não recolhida (R$ 2.020,00). Todavia, a aplicação do princípio da insignificância ao caso sob exame foi considerada inviável.
Do voto do relator transcrevemos:
Como se sabe, a configuração do delito de bagatela, conforme tem entendido esta Corte, exige a satisfação concomitante de determinados requisitos, quais sejam, conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica inexpressiva.
(...) a conduta do paciente, quando deixou de repassar a contribuição descontada do salário do seu empregado, além de descumprir um dever que tem para com a Previdência Social, violou também o direito de toda a sociedade de ter um sistema previdenciário que goze de saúde financeira, apto a garantir a todos a cobertura naquelas situações de necessidade anteriormente mencionadas.
Da fundamentação do voto do relator destacamos: a) a conduta do paciente encontra-se qualificada por um intenso grau de reprovabilidade, pois no delito de apropriação indébita previdenciária, o bem jurídico tutelado pela norma penal é a “subsistência financeira da Previdência Social” (HC 76.978/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa); b) a situação deficitária em que se encontra a Previdência Social e c) o caráter supraindividual do bem jurídico tutelado pela norma (o patrimônio da Previdência Social, o qual constitui patrimônio público). Por fim, destacou o relator:
(...) para os casos de débitos previdenciários de pequena monta, o próprio legislador previu, no § 3º, II, do art. 168-A do CP, hipótese de perdão judicial ou aplicação exclusivamente da pena de multa, preenchidos determinados requisitos, quais sejam: agente primário e de bons antecedentes e valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, igual ou inferior ao estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.
No âmbito dos delitos previdenciários se discute qual seria o valor que deve ser considerado insignificante para fins penais, ou seja, para se reconhecer a atipicidade do fato. Atualmente é sustentável a tese dos R$ 10.000,00[1].
Se o valor hoje admitido pelo STF (HC 92.438-PR) é de R$ 10.000,00 (por força da Lei 11.033/2004, art. 21), nos casos de créditos tributários, nada impede (aliás, tudo aconselha) estender esse limite também para os delitos previdenciários. O bem jurídico é o mesmo, o critério da insignificância tem que ser o mesmo.
Se esse valor é insignificante para o fim de ajuizamento da ação fiscal (se o fisco entende que não vale a pena executar qualquer débito até esse patamar de R$ 10.000,00 – cf. MP 449/2008), com muito mais razão é irrelevante para fins penais.
Todos os débitos previdenciários não recolhidos aos cofres do INSS até esse total não constituem infração penal. Fato atípico. Justamente por isso é que não é o caso de se aplicar a pena de multa ou de se conceder o perdão judicial (CP, art. 168-A, § 3º, II e art. 337-A, § 2º, II). Havendo antagonismo entre a letra da lei e o Direito, prepondera o último (que deve sempre ser interpretado conforme a Constituição).
O limite de R$ 10.000,00 serve de guia para o reconhecimento do princípio da insignificância nos crimes previdenciários. Mas não seria correto dizer que é um critério de validade ampla, geral e irrestrita. Em matéria de insignificância (penal) cada caso é um caso.
Formalmente a conduta de quem deixa de recolher aos cofres da Super Receita a contribuição previdenciária de R$ 1.000,00 (por exemplo) está realizando o tipo legal. Mas tipo legal não é tipo penal. Subsunção formal não é adequação típica material.
O crédito da União ou INSS (até R$ 10.000,00) não desaparece. Desde que surjam outros créditos, quando o total ultrapassa o patamar dos R$ 10.000,00, instaura-se a execução fiscal. O fisco não ficará impedido de propor a execução fiscal (diante dos novos créditos), apesar de já extinta a punibilidade no âmbito penal (no que diz respeito ao crédito original). São instâncias distintas, regidas por regras diferentes[2].
DATA VENIA (Luiz Flávio Gomes)
O entendimento consagrado no julgado ora comentado é tendencialmente moralista e típico de uma política criminal punitivista, bastante em voga no nosso país (por força do chamado populismo penal, cognominado de “datenização do direito penal”). Se até mesmo o legislador disse que era para aplicar perdão judicial ou só a pena de multa (nos casos em que o valor do dano não supera o valor admitido para o ajuizamento da execução fiscal) é porque ele,legislador, já valorou o bem jurídico da forma como devia valorar. O julgado, falando em bem jurídico muito relevante (déficit da previdência, direito do povo a um serviço social, “dever” de respeito à previdência etc.) foi mais realista do que o rei.
Se o legislador, que tem representação democrática direta, mandou aplicar só a multa ou o perdão judicial, não pode o juiz, com seus critérios abstratos, substituí-lo (e dizer que o bem jurídico patrimônio previdenciário não admite a insignificância). Estamos falando de puro patrimônio (do INSS). Só isso. Nenhum outro bem jurídico está protegido pela lei citada (art. 168-A do CP). O patrimônio (ainda que público) não tem a relevância que o julgado lhe pretende emprestar. Negar a aplicação do direito justo (do princípio da insignificância), até por analogia ao que já acontece com os delitos tributários, com os argumentos populistas utilizados (déficit da previdência, direito do povo a um serviço social, dever de respeito à previdência etc.), seria uma tarefa que ficaria mais apropriada no legislador populista ou no processo de “datenização” do direito penal, ao qual não é legítimo nenhum magistrado se curvar. Lamentável quando um julgamento judicial pretende fazer política criminal mais dura do que a prevista na própria lei. Se a forma jurídica foi adotada pelo legislador e essa forma não é inconstitucional, dela o juiz não pode se afastar (ainda que dela discorde). A lei penal, nesse caso, quando fixa uma determinada forma jurídica não inconstitucional, deixa de ser a Magna Carta do delinquente, que passa a se sujeitar à particular política criminal adotada na decisão judicial. Enfocar o delito previdenciário como rompimento do “dever de respeito à previdência” é dar à norma um entendimento puramente imperativo (determinativo), ignorando o seu aspecto valorativo. É ver o crime como mera infração da norma, ou seja, de um dever. Isso foi corrente no nazismo, sustentado sobretudo pela Escola de Kiel, por Dahn e Shaffstein e tantos outros fascistas da época. Em síntese, com a devida vênia (DATA VENIA), o julgado em comento não palmilhou o melhor direito (s.m.j.).
Notas de rodapé:
[1]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 123-126.
[2]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 123-126.
BIBLIOGRAFIA
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 123-126.
Fonte: LFG