quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Crimes previdenciários e princípio da insignificância.


Excelente Artigo de autoria do Professor Luiz Flávio Gomes. 

LUIZ FLÁVIO GOMES

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br - Pesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante.

Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Crimes previdenciários e princípio da insignificância. Disponível em http://www.lfg.com.br - 08 de setembro de 2010.

Em 22 de junho de 2010 a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu habeas corpus em que condenado pelo delito de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) pleiteava a aplicação do princípio da insignificância (STF, HC 98021/SC, Primeira Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22.06.2010, DJe-149, 13.08.2010).

O impetrante sustentou a atipicidade da conduta praticada pela aplicação do princípio da insignificância, pois seria de pequeno valor a contribuição previdenciária descontada e não recolhida (R$ 2.020,00). Todavia, a aplicação do princípio da insignificância ao caso sob exame foi considerada inviável.

Do voto do relator transcrevemos:

Como se sabe, a configuração do delito de bagatela, conforme tem entendido esta Corte, exige a satisfação concomitante de determinados requisitos, quais sejam, conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica inexpressiva.

(...) a conduta do paciente, quando deixou de repassar a contribuição descontada do salário do seu empregado, além de descumprir um dever que tem para com a Previdência Social, violou também o direito de toda a sociedade de ter um sistema previdenciário que goze de saúde financeira, apto a garantir a todos a cobertura naquelas situações de necessidade anteriormente mencionadas.

Da fundamentação do voto do relator destacamos: a) a conduta do paciente encontra-se qualificada por um intenso grau de reprovabilidade, pois no delito de apropriação indébita previdenciária, o bem jurídico tutelado pela norma penal é a “subsistência financeira da Previdência Social” (HC 76.978/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa); b) a situação deficitária em que se encontra a Previdência Social e c) o caráter supraindividual do bem jurídico tutelado pela norma (o patrimônio da Previdência Social, o qual constitui patrimônio público). Por fim, destacou o relator:

(...) para os casos de débitos previdenciários de pequena monta, o próprio legislador previu, no § 3º, II, do art. 168-A do CP, hipótese de perdão judicial ou aplicação exclusivamente da pena de multa, preenchidos determinados requisitos, quais sejam: agente primário e de bons antecedentes e valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, igual ou inferior ao estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.

No âmbito dos delitos previdenciários se discute qual seria o valor que deve ser considerado insignificante para fins penais, ou seja, para se reconhecer a atipicidade do fato. Atualmente é sustentável a tese dos R$ 10.000,00[1].

Se o valor hoje admitido pelo STF (HC 92.438-PR) é de R$ 10.000,00 (por força da Lei 11.033/2004, art. 21), nos casos de créditos tributários, nada impede (aliás, tudo aconselha) estender esse limite também para os delitos previdenciários. O bem jurídico é o mesmo, o critério da insignificância tem que ser o mesmo.

Se esse valor é insignificante para o fim de ajuizamento da ação fiscal (se o fisco entende que não vale a pena executar qualquer débito até esse patamar de R$ 10.000,00 – cf. MP 449/2008), com muito mais razão é irrelevante para fins penais.

Todos os débitos previdenciários não recolhidos aos cofres do INSS até esse total não constituem infração penal. Fato atípico. Justamente por isso é que não é o caso de se aplicar a pena de multa ou de se conceder o perdão judicial (CP, art. 168-A, § 3º, II e art. 337-A, § 2º, II). Havendo antagonismo entre a letra da lei e o Direito, prepondera o último (que deve sempre ser interpretado conforme a Constituição).

O limite de R$ 10.000,00 serve de guia para o reconhecimento do princípio da insignificância nos crimes previdenciários. Mas não seria correto dizer que é um critério de validade ampla, geral e irrestrita. Em matéria de insignificância (penal) cada caso é um caso.

Formalmente a conduta de quem deixa de recolher aos cofres da Super Receita a contribuição previdenciária de R$ 1.000,00 (por exemplo) está realizando o tipo legal. Mas tipo legal não é tipo penal. Subsunção formal não é adequação típica material.

O crédito da União ou INSS (até R$ 10.000,00) não desaparece. Desde que surjam outros créditos, quando o total ultrapassa o patamar dos R$ 10.000,00, instaura-se a execução fiscal. O fisco não ficará impedido de propor a execução fiscal (diante dos novos créditos), apesar de já extinta a punibilidade no âmbito penal (no que diz respeito ao crédito original). São instâncias distintas, regidas por regras diferentes[2].

DATA VENIA (Luiz Flávio Gomes)

O entendimento consagrado no julgado ora comentado é tendencialmente moralista e típico de uma política criminal punitivista, bastante em voga no nosso país (por força do chamado populismo penal, cognominado de “datenização do direito penal”). Se até mesmo o legislador disse que era para aplicar perdão judicial ou só a pena de multa (nos casos em que o valor do dano não supera o valor admitido para o ajuizamento da execução fiscal) é porque ele,legislador, já valorou o bem jurídico da forma como devia valorar. O julgado, falando em bem jurídico muito relevante (déficit da previdência, direito do povo a um serviço social, “dever” de respeito à previdência etc.) foi mais realista do que o rei.

Se o legislador, que tem representação democrática direta, mandou aplicar só a multa ou o perdão judicial, não pode o juiz, com seus critérios abstratos, substituí-lo (e dizer que o bem jurídico patrimônio previdenciário não admite a insignificância). Estamos falando de puro patrimônio (do INSS). Só isso. Nenhum outro bem jurídico está protegido pela lei citada (art. 168-A do CP). O patrimônio (ainda que público) não tem a relevância que o julgado lhe pretende emprestar. Negar a aplicação do direito justo (do princípio da insignificância), até por analogia ao que já acontece com os delitos tributários, com os argumentos populistas utilizados (déficit da previdência, direito do povo a um serviço social, dever de respeito à previdência etc.), seria uma tarefa que ficaria mais apropriada no legislador populista ou no processo de “datenização” do direito penal, ao qual não é legítimo nenhum magistrado se curvar. Lamentável quando um julgamento judicial pretende fazer política criminal mais dura do que a prevista na própria lei. Se a forma jurídica foi adotada pelo legislador e essa forma não é inconstitucional, dela o juiz não pode se afastar (ainda que dela discorde). A lei penal, nesse caso, quando fixa uma determinada forma jurídica não inconstitucional, deixa de ser a Magna Carta do delinquente, que passa a se sujeitar à particular política criminal adotada na decisão judicial. Enfocar o delito previdenciário como rompimento do “dever de respeito à previdência” é dar à norma um entendimento puramente imperativo (determinativo), ignorando o seu aspecto valorativo. É ver o crime como mera infração da norma, ou seja, de um dever. Isso foi corrente no nazismo, sustentado sobretudo pela Escola de Kiel, por Dahn e Shaffstein e tantos outros fascistas da época. Em síntese, com a devida vênia (DATA VENIA), o julgado em comento não palmilhou o melhor direito (s.m.j.).

Notas de rodapé:

[1]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 123-126.
[2]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 123-126.

BIBLIOGRAFIA

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010, p. 123-126.


Fonte: LFG